Saturday, November 08, 2008

Dolmens digitais


Chovia. Acordei com o som de seu isqueiro e seus passos no corredor. Passos macios como de costume. Aliás, ela era toda macia. Toda. Ainda lembro da tarde plúmbea no Café do Francês. Ela no balcão sorvendo suavemente seu chá predileto e pedindo uma música de Coltrane. Porra, John Coltrane! Essa mina é foda, pensei. Rabiscava vorazmente e com uma expressão de êxtase a cada palavra escrita. Poemas, soube depois. Dizia-me que eu deveria escrever também. Certa vez na faculdade em que ela cursava, enquanto esperávamos o bendito ônibus, declamou um texto de Bandeira Tribuzzi em cima de uma planta que recostava-se preguiçosamente por ali. Eu sorri. Que mais poderia fazer diante de todo aquele potencial artístico. Metafísico. Erótico-passional. Sei lá.
Um dia, fui convidá-la para assistirmos à apresentação da banda de um amigo em comum. Um som estratosférico-progressivo-lisérgico, como o próprio guitarrista o definia. Liguei. A mensagem tentava consolar-me de que ela já estava longe, fora do alcance dos raios da telefonia moderna. Insisti. Redisquei. Em vão. Não desperdicei o convite e fui cabisbaixo assistir ao show. Algumas cervejas depois recitei mentalmente, ao som de uma triste canção, um dos versos mais foda que ela escreveu. Chamava-se Dolmens Digitais:

“Corto meus pulsos
com barbeadores elétricos
e mergulho nas águas gélidas
do meu copo
teu corpo me vem em mente
e, acredite,
não conto duas vezes a mesma mentira
então,
tira-me daqui.”

Também pedi para tirarem-me de lá. Mas tive que sair por minha própria conta e após incontáveis quedas cheguei em casa. Exausto, ébrio e com uma puta saudade de algumas horas sem vê-la.
Horas essas que se arrastam até o momento em que acordo ouvindo o acender de um cigarro que eu julgava ser dela. Passos que eu também julgava ser dela. Levanto sem calçar meus chinelos. Afoito, temeroso. Corro até a porta e ao abri-la deparo-me, na parte de baixo da escada, com móveis e caixas de mudança. Objetos embalados em plástico-bolha e jornal. Pude visualizar bem uma reprodução de um quadro de Tarsila. Anjos. Angelicalmente, o apartamento ao lado será ocupado por uma linda vizinha que, com os cabelos molhados da chuva lá fora, acende outro cigarro e gentilmente me oferece um também em troca de minha ajuda. Aceito. Que mais posso fazer diante de tamanho apelo nicotínico. Matinal. Pictórico-onírico. Sei lá.

Labels: , , , , , , ,

3 Comments:

At 8:11 AM , Blogger Não vale nenhum centavo said...

This comment has been removed by the author.

 
At 8:14 AM , Blogger Não vale nenhum centavo said...

ai os cigarros...esse delicosos desgraçados...cigarro, martine e uma boa música, combinação perfeita. E viva a boemia! \o/

ps.: sobre encontrar walrus no mundo real, ñ se preocupe, em breve a festa do ñ te quero mais...ou algo assim sei lá, enfim v6 vão poder se encontrar q lindo *.* hahaha

 
At 5:47 PM , Blogger Não vale nenhum centavo said...

atualizaaa

saudades dos seus poemas

XD

 

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home

Creative Commons License
Manifesto Frilazine by Leonardo Leal is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil License.